quinta-feira, 12 de junho de 2008

Tributário - Sigilo fiscal

Um dos temas mais delicados da relação contemporânea entre Estado e indivíduo é o que toca aos limites da ação (ou ingerência) estatal sobre a privacidade e a intimidade do cidadão. No Direito Tributário, este problema aparece de forma muito clara na discussão acerca do alcance do sigilo fiscal.
Todo contribuinte tem o dever de recolher os tributos exigidos segundo leis constitucionais e informar ao Fisco os elementos patrimoniais, financeiros e econômicos necessários à adequada aferição da capacidade contributiva individual. Estas informações revelam a individualidade de cada contribuinte, constituem manifestações da privacidade e da vida íntima e por isso são objeto de proteção constitucional como direito e garantia fundamental (art. 5º, X).
Nas difíceis condições de segurança pública existentes no Brasil, o sigilo fiscal, até mais do que garantia relativa à privacidade e intimidade, passa a ser exigência da própria liberdade e incolumidade física das pessoas. É imprevisível o que aconteceria se as informações patrimoniais de todos os brasileiros pudessem ser livremente acessadas por qualquer pessoa, aí incluídos os delinqüentes.
O Código Tributário Nacional (art. 198) veda a divulgação por parte de servidor da Fazenda Pública de informação sobre a situação econômica ou financeira do contribuinte ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. O intercâmbio de informações entre diferentes órgãos da Administração Pública só pode ser realizado quando houver processo regularmente instaurado e a entrega das informações deverá ser feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo fiscal.
Recentemente, a Portaria MP/CGU nº 298/07, assinada entre o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e a Controladoria Geral da União, determinou que todo agente público do Poder Executivo federal 'deverá autorizar o acesso, por meio eletrônico, às cópias de suas declarações de ajuste anual de Imposto de Renda'.
Esta regra tem o claro propósito de exigir dos servidores do Poder Executivo Federal, como condição jurídica para o exercício da função pública, a renúncia ao direito à privacidade manifestada pelo sigilo fiscal.
Uma das características fundamentais dos direitos individuais é a irrenunciabilidade pelo seu titular, ou seja, o poder garantidor do Direito vai além da manifestação solitária de vontade. A ninguém é dado o direito de renunciar a um direito que lhe é constitucionalmente reconhecido como sagrado.
Logo, a irrenunciabilidade do direto ao sigilo fical, como manifestação da privacidade e da intimidade, por si só, já torna inconstitucional a exigência de abertura desta garantia prevista pela citada Portaria. A inconstitucionalidade torna-se ainda mais candente quando a renúncia ao direito ao sigilo fiscal transforma-se em conditio juris para o exercício do múnus publico, inovando o regime jurídico do serviço público federal.
Se a exigência contemplada na citada regra tem por objetivo controlar a evolução patrimonial dos servidores públicos federais, nada impediria que no futuro a mesma restrição fosse imposta também aos servidores públicos dos Poderes Judiciário e Legislativo, já que estes também são remunerados pelo Erário e submetidos as mesmas regras de incidência tributária.
Além das apontadas inconstitucionalidades, a citada regra agride ainda o princípio da isonomia tributária (art. 150, II) na medida em que cria duas espécies de contribuintes: aqueles protegidos pelo sigilo fiscal e aqueles não protegidos por esta prerrogativa constitucional.
A Associação dos Servidores da Agência Brasileira de Inteligência ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4084) no Supremo Tribunal Federal contra a referida portaria. Oxalá a Corte assegure a garantia da privacidade dos servidores públicos federais. Para quem não é servidor público, fica o alerta de que primeiro a restrição está sendo imposta a esta categoria de contribuinte, depois poderá ser estendida a todos os demais.
Autor: Helenilson Cunha Pontes Livre-docente e doutor pela USP e advogado tributarista.

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