sexta-feira, 4 de julho de 2008

Tributário - Maré turva da complexidade tributária


EVERARDO MACIEL
Os grandes tributaristas contemporâneos, dentre eles Klaus Tipke, Paul Kirchoff e Vito Tanzi, são unânimes em admitir a simplificação como um princípio basilar dos sistemas tributários modernos. Na dicção do grande tributarista português Casalta Nabais, recebeu a elegante denominação de princípio da praticabilidade. Todos percebem que sistemas tributários desnecessariamente complexos favorecem a sonegação e a elisão fiscal, reduzem a capacidade de compreensão dos contribuintes e obstaculizam o próprio trabalho da fiscalização. Alguns países, notadamente os da Europa Oriental, radicalizaram na opção pela simplificação, ao acolherem o "flat tax", como forma de tributação da renda. Tal modelo estabelece que a renda será tributada pela simples incidência de uma alíquota sobre os rendimentos brutos, sem tomar em conta qualquer dedução ou classes de renda. Nega peremptoriamente a aplicação do princípio da progressividade, para remetê-lo à política de gastos. No caso brasileiro, apenas a título de exercício, por se tratar de tese francamente inconstitucional, a alíquota do imposto de renda das pessoas físicas seria de 8,5%. Creio que essa solução é demasiado radical, por isso vejo-a com muitas reservas. Não posso, entretanto, deixar de reconhecer que ela representa uma reação contra o que generalizadamente se entende como o caos tributário. Nos últimos anos, percebo mudanças na legislação brasileira que apontam na direção contrária à simplificação tributária, cujas conseqüências não foram ainda devidamente aquilatadas. O Simples representou um notável progresso na tributação das pequenas e médias empresas. Ainda que originalmente restrito ao âmbito federal, induziu a construção de sistemas análogos na tributação do ICMS. Muitos se queixavam, contudo, que seria necessário conferir ao Simples dimensão nacional, abrangendo os tributos federais, estaduais e municipais. A demanda era legítima e sensata, tendo inspirado a Emenda Constitucional n 42, de 2003, que introduziu no texto constitucional o parágrafo único do art. 146. Essa norma previa a instituição, por lei complementar, de um Simples Nacional. De fato, assim ocorreu com a sanção da Lei Complementar n 123, de 2006. O que deveria ser objeto de comemoração converteu-se em motivo para lamentação. O Simples Nacional é de uma extraordinária complexidade. Gerou uma pavorosa forma de apuração do tributo, a ponto de o legislador desculpar-se na própria lei, com a promessa de disponibilizar para os contribuintes um sistema eletrônico para simplificar (!) o cálculo do valor devido (art. 18, § 15, da Lei Complementar n 123). Admitiu uma estranha possibilidade de fiscalização concorrente entre a União, estados e municípios. Transformou em quimera a exigência constitucional do cadastro único. Já agora se constata nova inflexão na trajetória da simplificação do sistema tributário brasileiro. A tributação de bebidas frias, desde 1989, com aperfeiçoamentos introduzidos em 2004, tomava por base a incidência de alíquotas específicas, isto é, os tributos levavam em consideração a natureza da bebida e seu volume físico e não os preços dos produtos. Tecnicamente, diz-se que se tratava de uma incidência ad rem em contraposição à incidência ad valorem. Esse modelo é adotado em inúmeros países, justamente para prevenir a óbvia possibilidade de sonegação nos preços, não apenas de bebidas, mas também de tabaco e combustíveis. A recém-sancionada Lei n 11.727, decorrente da conversão da Medida Provisória n 413, acolheu um "contrabando", introduzido à socapa, para reformular completamente a tributação das bebidas frias. Qualquer especialista que compulsar os artigos da lei que tratam dessa matéria fica espantado com a primorosa complexidade estabelecida. Abriu-se um campo fértil para sonegação e elisão fiscal, para não falar no restabelecimento de velhas contendas judiciais, pacificadas há muito tempo. As alegações para a mudança são pífias. À luz de aritmética frívola, procura-se demonstrar que, na incidência ad rem, dois produtos com preços distintos pagam o mesmo tributo. Óbvio que é assim, justamente porque a incidência não é ad valorem. Raciocínio, portanto, tautológico. O que cabe assinalar é que, nos tributos indiretos, o verdadeiro contribuinte é o consumidor. A empresa tão-somente recolhe o imposto. Por absoluta impossibilidade, não se consegue distinguir, no ato do consumo, a renda do consumidor. Por essa razão, não se aplica o conceito de capacidade contributiva nos tributos sobre o consumo. Prefere-se o de seletividade, em função da natureza da mercadoria. Os produtos da cesta básica que ganham isenção não são onerados quando adquiridos por pessoas de maior renda. Por falta de nexo. Não se pode, também, esquecer que margens maiores resultantes da tributação ad rem são capturadas pela tributação da renda. Como convém. De resto, como dizia Schopenhauer, "a simplicidade é o selo da verdade". kicker: O Simples Nacional acabou gerando uma pavorosa forma de apuração
(Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) EVERARDO MACIEL* - Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal. Próximo artigo do autor em 24 de julho)

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