sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Reflexões sobre a mitologia tributária

29 de Fevereiro de 2008 - Por ser intrinsecamente complexa, a matéria tributária se sujeita muito freqüentemente a construções míticas, alimentadas pela natural e histórica rejeição aos tributos e pela incapacidade de compreender que os sistemas tributários se moldam às circunstâncias históricas e políticas de cada país. Diz-se, com procedência, que o sistema tributário brasileiro é complexo. Não se diz, todavia, que todos os sistemas tributários, em maior ou menor grau, são complexos. Um declarante, pessoa física ou jurídica, de Imposto de Renda (IR) no Brasil ficaria horrorizado se tivesse que fazer o mesmo nos Estados Unidos. Não apenas pela precariedade dos meios de transmissão da declaração, mas sobretudo pela existência de uma legislação somente acessível a profissionais muito especializados. O Imposto de Valor Agregado (IVA) europeu está muito longe de ser algo simples. É complexo, controverso e vulnerável à sonegação. Na Alemanha, existe imposto sobre os proprietários de cães. Os ingleses, agora, falam em criar um tributo sobre a obesidade! Há mais de dez anos, o The Economist fez uma longa matéria, anunciando a morte do Imposto de Renda das empresas, pela fragilidade desse tributo no enfrentamento de práticas nocivas de tributação, que assumiram grande proporção em virtude da globalização das atividades econômicas. Diz-se que temos um grande número de tributos. Sem dúvida, é verdade. Esse fato decorre, entretanto, de um processo anárquico no aumento das transferências federais para estados e municípios, tendo por base a arrecadação do IR e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Quando de sua instituição, em 1967, os percentuais incidentes sobre esses impostos que foram destinados àquelas transferências eram pouco superiores a 10%. Hoje se aproximam de 50%. O grave é que esse aumento não se fez acompanhar de uma transferência de encargos. Mantidas as responsabilidades federais, a União se viu obrigar a instituir e expandir, desde a década de 70, contribuições sociais. A tributação brasileira ficou diferente de modelos de outros países, também diferentes entre si. Tudo se explica à luz de nossa realidade. Resta perguntar: um número grande de tributos é algo iníquo? Em princípio é, a despeito de entender-se que, no caso brasileiro, existam boas explicações para esse fato. A China e a Índia têm mais de 40 tributos, nem por isso deixam de ser hoje importantes locomotivas da economia mundial. Mais grave que um grande número de tributos é a complexidade de um único tributo, que dificulta o cumprimento da obrigação e a atividade de fiscalização, além de abrir as portas para sonegação e para corrupção administrativa. Sempre que possível convém proceder à redução, porém é mero simplismo pensar que simplificação é reduzir número de tributos. No Brasil, o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) aparentam ser duas contribuições. Na prática, todavia, constituem uma única, a ponto de serem reconhecidas como PIS/Cofins. O que as torna diferentes é sua destinação e não a legislação tributária regente. De igual forma, o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), em verdade, são um só tributo. A legislação de outros países, inclusive nos tratados para prevenir a bitributação, admite que o pagamento da CSLL deva ser tomado como crédito para fins de apuração, em bases mundiais, do Imposto de Renda das empresas em seus respectivos países. A distinção entre o IRPJ e a CSLL se constata tão-somente no plano das vinculações e da partilha, vez que as aplicáveis legislações tributárias são praticamente idênticas. Recolher esses pares de tributos mediante um único documento de arrecadação é assunto que se resolve por meio de uma instrução normativa da Receita Federal. O recurso a propostas de emenda constitucional para lograr essa finalidade, além de ser equivocado, no que concerne ao instrumento legislativo, franqueia inconvenientes discussões sobre a partilha de rendas e a vinculação de receitas - temas que já fustigam suficientemente, neste País, o imperfeito federalismo fiscal e a confusa gestão dos recursos públicos. Os caminhos da simplificação, certamente, são outros: unificar a legislação do ICMS, ampliar os limites para opção em favor do regime do lucro presumido, eliminar as diferentes normas que recentemente poluíram a incidência não-cumulativa do PIS/Cofins, suprimir tudo fez do SuperSimples uma caricatura do Simples em termos de simplicidade, etc. Não sem razão, Einstein afirmou: "Tudo deveria ser tornado tão simples quanto possível, mas não mais simples do que isso". Temo que o simplismo em matéria tributária nos afaste dos verdadeiros objetivos da simplificação, pela prática fácil da demagogia fiscal. kicker: O simplismo em matéria tributária poderia nos afastar da simplificação (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 3) EVERARDO MACIEL* - Consultor tributário e ex-secretário da Receita Federal. Próximo artigo do autor em 20 de março)

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