terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Não façam o que eu digo nem façam o que eu faço

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acordou diferente em 2008. Sua “ojeriza” a pacotes econômicos e sua promessa à nação de não aumentar impostos para compensar a perda de quase R$ 40 bilhões da receita da CPMF caíram por terra no primeiro dia útil do ano e atingiram consumidores, empresas e bancos como balas perdidas.
A novela em torno da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CMPF) parecia rumar em 2007 para um desfecho bem diferente. Lamentava-se a perda de recursos para a já combalida Saúde no Brasil, mas o país saudou a reação equilibrada do presidente após a derrota política no Senado. Esperava-se um ano de austeridade, com cortes de gastos públicos e moderação tributária. Lula tranqüilizara a sociedade, que hoje arrasta o peso de um Estado guloso. Um Estado que consome, em impostos, mais de 36% do Produto Interno Bruto (eram 22% em 1989). O presidente Lula chegou a desmentir publicamente na última quinzena de 2007 o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Mantega anunciara um possível novo tributo para recompor o caixa federal.
Na virada do ano, tudo mudou. O pacote de Lula prevê cortes de R$ 20 bilhões nos gastos públicos, mas esse compromisso é vago. O governo ainda não definiu onde vai cortar. As duas medidas mais efetivas são justamente o aumento de dois impostos: o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), cobrado nas operações de crédito e de câmbio de pessoas físicas e empresas, e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) cobrada dos bancos. No anúncio das medidas, um toque de escárnio à quebra de palavra pelo governo: segundo o ministro Guido Mantega, a promessa de Lula de não aumentar impostos se referia apenas a 2007 e não alcançava 2008. Com isso, o ministro conseguiu irritar até o presidente, que atribuiu a má repercussão do pacote, em parte, ao desempenho de Mantega na mídia. Com a elevação dos dois impostos, o governo pretende arrecadar R$ 10 bilhões. Na prática, a maior parte dessa conta vai ser assumida por consumidores, ricos ou pobres. Eles terão de pagar mais caro, em operações de crédito e empréstimo bancário para comprar automóveis e eletrodomésticos. O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Fábio Barbosa, disse que o encarecimento do crédito para o consumidor será “inevitável”. O aumento do IOF, que teve sua alíquota elevada em 0,38% (a mesma que era cobrada na vigência da CPMF), deverá pesar sobretudo nos financiamentos de longo prazo. O consumidor interessado em parcelar a compra em 60 meses de um carro de R$ 25 mil pagará R$ 1.200 a mais de imposto do que antes (leia a simulação no quadro ). Os bancos não admitem oficialmente, mas o crédito mais caro para o consumidor se deve a uma lógica interna e perversa: a expectativa é que os bancos repassem para seus clientes os custos mais altos, conseqüência direta da elevação da CSLL. O governo calcula que esse aumento de imposto para os bancos entrará em vigor dentro de três meses. Mas, ao contrário do que ocorreu com o IOF, elevado automaticamente, há dúvidas se o governo conseguirá aumentar a CSLL. O jurista Ives Gandra Martins cita jurisprudência firmada no Supremo Tribunal Federal (STF) e diz que os bancos podem contestar a constitucionalidade da medida e pagar o aumento só a partir de 2009.
A maior incógnita refere-se ao corte de R$ 20 bilhões no Orçamento federal. Essa é a parte do pacote que, para o presidente Lula, deveria ter sido mais enfatizada por Mantega. Lula queria dar uma resposta aos críticos e enviar um sinal ao mercado de que o governo não sabe apenas aumentar impostos e gastos, mas também diminuir suas despesas. Um dos maiores especialistas em contas públicas do país, o economista Raul Velloso diz que o corte estipulado pelo governo é portentoso. “Nunca vi um esforço tão grande ser feito num único ano”, afirma. “É tão complicado esse corte de R$ 20 bilhões que fica difícil acreditar que o s governo conseguirá.” Até agora, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, responsável pelo Orçamento da União, só fez menções genéricas de que serão suspensos aumentos de salários para o funcionalismo público, novas contratações por meio de concurso, incentivos fiscais para alguns setores de indústria e o reaparelhamento das Forças Armadas. Na realidade, essas medidas cortam aumentos de gastos projetados — em vez de eliminar despesas que já existam.
Há uma questão de ordem prática para desconfiar que a conta dos R$ 20 bilhões de cortes será difícil de fechar. Apesar de o Orçamento da União ser de R$ 680 bilhões, não se pode mexer em 90% das verbas federais, pois elas têm destinação obrigatória por força de lei ou por compromissos fiscais assumidos. São transferências para Estados e municípios, despesas obrigatórias com Saúde e Educação, salários do funcionalismo e benefícios da Previdência, pagamento dos juros e encargos da dívida pública. Sobram R$ 45 bilhões previstos no Orçamento para investimentos, que podem sofrer cortes.
Mas aí também há um problema para aplicar a tesoura. No anúncio do pacote, o governo disse que vai poupar os investimentos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O grosso dos investimentos dos ministérios com maior orçamento — como Transportes, Cidades e Integração Nacional — está vinculado ao PAC. Pelos cálculos de Raul Velloso, a meta de R$ 20 bilhões dificilmente será cumprida se não incluir também cortes nos projetos de infra-estrutura tão valorizados pelo presidente Lula, para os quais estão reservados R$ 18 bilhões. Entre esses projetos, está a urbanização de favelas, alardeada por Lula como uma revolução na habitação popular.
O remendo As medidas do governo para repor os R$ 40 bilhões perdidos com o fim da CPMF. Só R$ 10 bilhões estão garantidos pelo aumento de impostos Por fim, há as dificuldades políticas. O governo disse que os Três Poderes — Executivo, Judiciário e Legislativo — serão atingidos. No Executivo, isso significa conciliar as disputas internas entre os ministros. Convocados na imensa e heterogênea aliança de apoio ao governo, formada por nove partidos, eles costumam ter interesses totalmente divergentes e nessas horas tratam, cada um, de preservar seu quinhão. No Judiciário, a contenção de despesas pode interromper a construção de prédios suntuosos como o da nova sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), avaliada em R$ 350 milhões. s “A interrupção de uma obra causa prejuízos seriíssimos”, disse o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello. No Legislativo, podem-se cortar os R$ 15 bilhões destinados às emendas dos parlamentares. Mas, em ano de eleições municipais, mexer nessa rubrica do Orçamento é comprar uma briga com os partidos aliados, que ficarão sem recursos para executar obras prometidas. Na semana passada, os aliados já se queixavam de não ter sido consultados pelo governo sobre o pacote do Réveillon. “A meta de reduzir gastos requer uma enorme determinação política do governo”, diz Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.
Essa determinação tem sido escassa. Na semana passada, o governo Lula confirmou ser mais ágil para ampliar gastos que para cortar. Duas medidas respingam na credibilidade do presidente. Para driblar uma proibição eleitoral, editou às pressas uma medida provisória, com alto potencial de votos, que aumenta os valores distribuídos do Programa Bolsa-Família (leia mais na reportagem ). No dia 27 de dezembro, o governo adiou de janeiro para 1º de julho a adoção de um sistema moralizador, destinado a disciplinar e restringir repasses federais para ONGs, municípios e Estados. Por causa dessa prodigalidade no uso dos recursos públicos, especialistas desconfiam que o governo vai cobrir a maior parte das perdas da CPMF com aumento da arrecadação de impostos. Segundo Alberto Ramos, economista sênior para América Latina do Goldman Sachs, o governo pode ter subestimado o aumento de receitas que terá em 2008. “A projeção de aumento de arrecadação é conservadora. Provavelmente o governo conseguirá mais de R$ 10 bilhões. Poderá chegar a R$ 20 bilhões, ou até R$ 30 bilhões”, diz Ramos. Segundo Everardo Maciel, o governo pode ainda aumentar outros impostos. “Eles falam em esforço de arrecadação. No mundo real, é o mesmo que dizer ‘não sei ainda qual imposto vou aumentar’”, afirma Everardo.
Fazer cortes no Orçamento em ano eleitoral é comprar briga com aliados, que ficarão sem dinheiro para obras Segundo o economista Paulo Rabello de Castro, da SR Ratings, a principal motivação do governo, ao anunciar o pacote de Réveillon, foi enviar um sinal ao mercado externo e às agências de classificação de risco da dívida brasileira. Entre os investidores internacionais, havia uma série de especulações de que o governo poderia, com o fim da CPMF, reduzir a meta de 3,8% do PIB para o superávit primário — o dinheiro economizado para pagar os juros da dívida pública. Se houvesse redução da meta de superávit, a obtenção do grau de investimento poderia ficar ameaçada. O grau de investimento é um patamar de classificação dado pelas agências de risco. Ao obter esse status, o país é avaliado como seguro e passa a receber mais investimentos estrangeiros. “O governo parece que quer receber nota 10 em Nova York”, diz Rabello de Castro. “Essa é a única explicação para anunciar no primeiro dia do ano um pacote incompleto que vai cortar, até agora, ventos.” Nesse sentido, o pacote foi bem-sucedido. Segundo Christopher Garman, analista da Eurásia, uma consultoria de Wall Street, os investidores estrangeiros ficaram satisfeitos e o Brasil continua no rumo certo para obter o grau de investimento.
O lamentável é que o país continue a recorrer a remendos de última hora para manter equilibradas suas contas. Essa tem sido uma prática comum desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Em 1998 e 1999, quando também ficou temporariamente sem a CPMF, FHC recorreu a um aumento do IOF para cobrir o buraco. Segundo o cientista Fernando Abrucio, o país vive de remendo em remendo há mais de dez anos (leia mais em sua coluna ). O ideal seria o país caminhar para uma reforma fiscal e tributária. Simplificaria assim o sistema de impostos, diminuiria o peso do Estado e aumentaria a eficiência do gasto público, dirigindo-o para as áreas onde seu aumento é necessário, como a Saúde. “A crise na Saúde, tão propalada nas negociações da CPMF, continua”, diz o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Saúde. O setor não ganhou nenhum recurso adicional com o pacote. É difícil, quase impossível, fazer o país engolir essa equação.
Fonte: Época

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