segunda-feira, 4 de maio de 2009

Federalismo e reforma tributária


Antonio Delfim Netto Os economistas estão necessitados de um urgente socorro dos historiadores na solução do problema do "sistema tributário" que persegue o Brasil desde a sua independência. Trata-se da questão do federalismo que foi incorporado à Constituição de 1891 e que impõe restrições ao sistema tributário, uma vez que implica uma relativa autonomia fiscal dos Estados e dos municípios. É evidente que a forma mais adequada da tributação depende, essencialmente, de como se organiza politicamente a sociedade. Mas é ainda mais evidente que as conveniências da organização política devem dominar as conveniências da tributação. É absurdo aplicar numa federação um sistema tributário que exige um Estado unitário, por mais virtuoso e vantajoso que seja. Ele requer a centralização que, por construção, ela recusa.
Até hoje não há consenso entre os economistas sobre se o nosso "federalismo" é um caso histórico especial (não obedece às condições gerais da construção dos federalismos conhecidos) ou se é uma simples emanação da vontade de Rui Barbosa. Este o teria intrujado (de contrabando) na Constituição de 1891, por puro prazer de imitar a organização dos Estados Unidos da América. A segunda hipótese é mais do que duvidosa. Supõe que a retórica de Rui era tão fulgurante que cegou a minoria e iluminou "escusos interesses" regionais da maioria dos constituintes, alguns de calibre intelectual que nada deviam ao dele. O que provavelmente se desejava era mesmo diminuir a excessiva centralização de poder vivida no Império. Somos um caso especial de federalismo sugerido pelo aprendizado da lição do poder centralizado do Império, que durante ¾ de século ignorou as mínimas reivindicações de relativa autonomia tributária das províncias.
O nosso federalismo foi construído a partir do isolamento das capitanias hereditárias e se aprofundou no período colonial. Recusado na Constituição outorgada por D. Pedro I, em 1824, foi causa (principal ou secundária) de todas as revoltas que assistimos na Regência. E, ignorado pela intolerância de D. Pedro II foi, seguramente, um dos principais estímulos à construção da República. Beirando o segundo século desde a independência, ainda oscilamos em reconhecer que cada Estado tem uma situação histórica e geográfica diferente e precisa de alguma autonomia que, respeitando a integridade nacional, lhes dê instrumentos para cultivar seu desenvolvimento.
Essa margem de autonomia não se restringe aos problema tributários. Na República ela envolve todos os aspectos da vida cotidiana. À União cabe: 1º ) garantir a segurança externa, controlar as relações internacionais e coordenar a macroeconomia com uma legislação de ordem geral. Deve deixar aos Estados e municípios que cuidem dos seus microcosmos: da educação, da saúde, do meio ambiente etc; e 2º ) construir fundos de participação nos tributos federais que procurem nivelar os recursos públicos per capita postos à disposição dos cidadãos de cada Estado. A estes, por sua vez, cabe construir fundos de participação de municípios nas receitas estaduais que completem aquele objetivo. O papel do federalismo é utilizar a soma dos recursos nacionais para nivelar os serviços públicos à disposição de cada cidadão, não importa onde ele esteja fisicamente. O federalismo tem caráter essencialmente redistributivo: nivela as oportunidades das regiões menos desenvolvidas transferindo renda das mais desenvolvidas e dando, a todas, as condições isonômicas para aproveitar seus recursos naturais e humanos para o realizarem.
Estamos fantasticamente longe desse ideal. Como mostra a interessantíssima tabela de um artigo da competente professora Maria Helena Zuckun (Informe Fipe, abril de 2009: 18-21), um cidadão em Roraima tem à sua disposição recursos públicos (arrecadação tributária estadual e municipal, mais transferências totais da União) três vezes superior aos de um cidadão no Maranhão, apesar do primeiro receber 80% e o segundo 70% das suas receitas como "transferências" da União. Aliás, um cidadão em Roraima tem à sua disposição 40% a mais de recursos do que teria se estivesse em São Paulo, sem nenhuma correspondência com a qualidade dos serviços públicos que recebe.
Isso tudo acontece num país que tem a maior carga tributária do mundo para países com sua renda per capita e um dos mais ineficientes serviços públicos, o que dá à sua administração uma relação custo/benefício das piores de quantas existem no universo. Nosso problema não é ajustar a Federação à reforma tributária, mas esta àquela. Infelizmente os projetos em discussão corrigem, aqui e ali, algumas distorções, mas insistem na centralização. Precisamos preservar a descentralização buscada pelo federalismo e construir um sistema tributário que o atenda. O melhor, mesmo, é adiar a aprovação da reforma que está na Câmara por dois motivos: 1º ) porque ele não atende ao real interesse nacional de longo prazo e 2º ) porque se aprovado num momento de crise como o que vivemos, corremos o risco de produzir outro Frankenstein, uma vez que, cada vez mais os deputados federais - graças à possibilidade de reeleição sem descompatibilização - transformaram-se em despachantes dos prefeitos...
Antonio Delfim Netto professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br
Fonte: Valor Econômico

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